Suicídio de doutorando da USP levanta questões sobre saúde mental na pós
Praça do
Relógio na USP (Universidade de São Paulo), na zona oeste de São Paulo.
Foto: Diego Padgurschi - 14.set.2016/Folhapress
Prazos apertados, pouco dinheiro, pressão para publicar artigos, carga
de trabalho excessiva, cobranças, solidão. A vida de quem está na pós-graduação não é fácil.
Esses fatores
não só trazem dificuldades pessoais e sociais àqueles que optam por seguir
carreira acadêmica como também podem gerar consequências graves, como níveis
altos de estresse, depressão, ansiedade e outros transtornos.
"É uma questão sobre a qual ainda se fala pouco, embora o mestrado
e o doutorado tenham, sim, características que podem desencadear problemas
psicológicos ou psiquiátricos", diz Tânia de Mello, coordenadora do
Serviço de Assistência Psicológica e Psiquiátrica ao Estudante da Unicamp.
Em alguns casos, essa combinação pode
levar a atos extremos. Há cerca de dois meses um aluno de doutorado do
Instituto de Ciências Biomédicas da USP se suicidou no laboratório no qual
trabalhava.
Deixou, numa lousa que havia no local,
uma mensagem em que dizia estar cansado de tentar, de ter esperança, de viver.
O texto terminava com a expressão em inglês "I'm just done"
("para mim, chega", em tradução livre).
Segundo colegas, ele estava próximo da
qualificação (exame crucial que precede a defesa da tese) e vinha enfrentando
problemas em sua pesquisa. "Ele estava travado. O doutorado dele parecia
que não ia", disse um amigo que pediu à reportagem que não o
identificasse.
Para Eduardo Benedicto, coordenador do
Centro de Orientação Psicológica da USP de Ribeirão Preto, é preciso levar em
conta as especificidades de cada caso, mas, algumas situações da pós, sobretudo
em indivíduos mais suscetíveis, podem contribuir para o estudante achar que não
tem saída e desencadearem, por exemplo, um quadro de ideação suicida.
Mello lembra que as áreas
experimentais –como a do estudante que morreu– trazem um complicador a mais.
"Às vezes um equipamento quebra, um reagente não chega e o trabalho fica
parado. Estar sujeito a circunstâncias que não dependem de você é
angustiante."
CRISES DE PÂNICO
Mesmo quando
não está ligada a uma situação tão trágica, a rotina às vezes brutal da pós
pode causar prejuízos.
Rita (nome
fictício), 32, nunca havia tido nenhum transtorno psiquiátrico até entrar na
pós, há cinco anos. A carga excessiva de trabalho levou a estudante, hoje
doutoranda no Instituto de Biologia da Unicamp, a enfrentar problemas desde o
mestrado.
"Eu recebi
logo de cara muitas responsabilidades e comecei a achar que não daria conta,
que era uma impostora. A impressão que eu tinha era a de que esperavam de mim
mais do que eu poderia dar. Cheguei a pensar em suicídio."
Após buscar
ajuda psicológica e psiquiátrica –dentro e fora da universidade–, Rita superou
a crise e conseguiu concluir o mestrado.
No doutorado,
os problemas reapareceram. As responsabilidades se tornaram ainda maiores e os
prazos mais apertados. "Eu entrei em desespero. Tive crises de pânico.
Sofria com insônia e não conseguia levantar de manhã."
Os sintomas,
hoje, estão sob controle, mas Rita conta que a doença deixou sequelas.
"Terminei o mestrado há três anos e até hoje não consegui abrir a minha
dissertação".
Segundo a
estudante, problemas como o que ela enfrentou são encarados, dentro do ambiente
acadêmico, como uma fraqueza. "Te tratam como se você não estivesse
aguentando a pressão, não tivesse maturidade para o curso".
As
dificuldades a fizeram ainda repensar sua situação profissional. "Por mais
que eu goste das coisas que eu estudo, tenho sérias dúvidas, não sei se devo
continuar num meio que me machuca."
ORIENTADOR
Uma das
figuras centrais para todo aluno da pós-graduação é o orientador, o professor
incumbido de ajudá-lo a concluir a tese e prepará-lo para a pesquisa acadêmica.
Para
Benedicto, seria importante que os orientadores estivessem atentos às
dificuldades de seus alunos. "Verificamos, porém, que poucos têm essa
perspectiva. Em geral, eles enfatizam a produção do estudante e o pressionam
para que atinja os resultados esperados".
Mas o oposto,
isto é, o orientador ausente, pode ser tão prejudicial quanto o exigente
demais. "Eu escuto muitos alunos angustiados porque queriam alguém que
lhes desse um cronograma de atividades, um prazo para fazer as coisas",
diz Tânia de Mello.
"Não se
trata de transformar a figura do orientador num terapeuta, mas me parece
fundamental que ele tenha sensibilidade às características de cada aluno",
diz Benedicto.
CRISE ECONÔMICA
As incertezas
quanto ao futuro profissional, que acompanham quase todo estudante de
pós-graduação, tornam-se ainda mais agudas num momento de crise como o atual,
segundo os especialistas ouvidos pela reportagem.
Neste ano, os
recursos para a ciência, que já vinha em rota descendente, foram cortados em
cerca de 40%, tornando-se os menores em mais de uma década.
Além disso, as
universidades federais têm reduzido drasticamente as obras, atividades de pesquisas e concursos para novos docentes.
Do R$ 1,5
bilhão inicialmente previsto no orçamento para as federais investirem –valor um
terço menor do que 2016–, apenas 60% foram liberados até o momento.
"Vejo os
estudantes mais ansiosos diante dessa política de cortes. As agências de
fomento têm restringido as bolsas e isso os afeta diretamente, inclusive o
próprio envolvimento com o trabalho. Isso também os deixa com uma perspectiva
pessimista em relação às possibilidades da carreira acadêmica", diz
Eduardo Benedicto, psicólogo da USP de Ribeirão Preto.
Tânia de
Mello, psiquiatra da Unicamp, vai na mesma linha. "Percebemos no
atendimento ao estudante como a conjuntura econômica os deixa ansiosos e
angustiados".
Trata-se de
uma situação enfrentada pela pesquisadora Luciana Franci, 31, que hoje faz
pós-doutorado –atuando como pesquisadora– na Universidade Federal do Paraná.
Franci,
especialista na área de biologia vegetal, conta que, embora não tenha tido
maiores problemas durante o doutorado, teve crises graves de depressão e
ansiedade após o término do curso, em fevereiro de 2016.
"Bateu
aquela incerteza sobre o que eu faria a seguir, já que os concursos nas
universidades estavam parados e as bolsas de pós-doutorado não estavam sendo
concedidas. Tive uma sensação de estagnação, de ter perdido tempo fazendo
doutorado".
Ela diz que,
então, teve de voltar por um período para a casa dos pais e caiu em depressão
profunda, sem conseguir sair de casa ou conversar com as pessoas por semanas.
Hoje, contudo,
está melhor. "Estou fazendo um tratamento com psiquiatra há mais de um
ano."
A pesquisadora
conta que a desolação quanto ao futuro é muito comum entre seus colegas.
"Não temos perspectiva de que o cenário vá melhorar nos próximos anos.
Vejo muita gente na pós-graduação se perguntando 'para onde isso vai?', ' o que
vou fazer depois?'".
Tânia de Mello
aponta que existe muita oferta e estímulo para estudantes cursarem a
pós-graduação, mas que não se está parando para pensar nas perspectivas da
carreira acadêmica.
ESTATÍSTICAS
Apesar da
importância do tema, há poucas pesquisas sobre a influência da pós-graduação
sobre a saúde mental dos estudantes. Uma delas foi feita com alunos da UFRJ e
publicada em 2009 no periódico "Psicologia em Revista".
Após
entrevistas com 140 estudantes de todos os centros da universidade carioca, os
pesquisadores concluíram que 58,6% dos alunos apresentavam níveis médio e alto
de estresse.
Um estudo
publicado neste ano na Bélgica com quase 3.700 estudantes de doutorado mostrou
que um terço deles estava sob alto risco de desenvolver uma patologia como a
depressão. A taxa, segundo a pesquisa, é mais do que o dobro da apresentada por
grupos de comparação fora da universidade.
Tânia de Mello
diz que, embora seja difícil extrapolar tais resultados para os estudantes
daqui, todos os fatores considerados no artigo como debilitadores da saúde
mental do aluno de doutorado estão presentes na realidade brasileira.
Ela acrescenta
ainda um dado a mais que compõe o quadro nacional: "a vulnerabilidade
socioeconômica de alunos que não têm as bolsas aumentadas há anos".
O governo
federal paga, desde 2013, R$ 1.500 para estudantes de mestrado e R$ 2.200 para
os de doutorado, por sua dedicação exclusiva à pesquisa.
Editoria de Arte/Folhapress
[Artigo extraído do seguinte endereço: http://m.folha.uol.com.br/ciencia/2017/10/1930625-suicidio-de-doutorando-da-usp-levanta-questoes-sobre-saude-mental-na-pos.shtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newsfolha]
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