Arautos de mudanças
Estudo aborda o papel de indivíduos que ajudam a mobilizar a sociedade e a catalisar transformações
Montagem sobre ilustração de Lee Woodgate
A
importância de indivíduos que mobilizam a sociedade em favor de ideias e
agendas, catalisando transformações, é um tópico de estudos acadêmicos sobre a
gênese de políticas públicas. Um exemplo desses agentes, denominados
empreendedores de políticas públicas, é Ken Livingstone, prefeito de Londres
entre 2000 e 2008 que se tornou referência internacional no debate sobre a
mobilidade nas cidades – ele criou o pedágio urbano, uma taxa voltada para
reduzir o fluxo de automóveis no centro da capital britânica. Em um artigo
publicado em setembro na revista Policy and Society, os cientistas políticos Felipe
Gonçalves Brasil e Ana Cláudia Niedhardt Capella abordam o papel dos
empreendedores de políticas públicas no Brasil e discutem exemplos nacionais.
“Embora o estudo das políticas públicas tenha experimentado um período de forte
expansão no Brasil nas últimas décadas, há uma lacuna nessas análises
envolvendo os empreendedores”, afirma Brasil, doutorando na Universidade
Federal de São Carlos (UFScar).
O artigo mapeou teses e
dissertações defendidas no país nos últimos anos que utilizam modelos teóricos
sobre os empreendedores de políticas públicas e propôs que o caso do economista
Luiz Carlos Bresser-Pereira é um dos que melhor se enquadram nesse figurino. No
comando da reforma administrativa no primeiro governo de Fernando Henrique
Cardoso (1995-1998), o então ministro da Administração Federal empunhou a tese
de que a burocracia tinha um papel na crise do Estado brasileiro e apresentou
uma série de alternativas para enfrentar o problema. “Bresser disseminou a
ideia da reforma gerencial, influenciado por discussões que ocorriam na
Europa”, diz Ana Cláudia Capella, professora da Universidade Estadual Paulista
(Unesp). O ministro publicou artigos em revistas acadêmicas e na imprensa e
viajou pelo país participando de discussões. Em pouco tempo, a reforma
administrativa entrou no debate nacional. Bresser recorda que, embora o assunto
não estivesse na agenda de reformas proposta no programa eleitoral de Fernando
Henrique, recebeu carta branca para agir. “Eu estava convicto de que os
problemas da administração pública brasileira eram incompatíveis com o
desenvolvimento econômico e com o Estado de bem-estar social. Conhecia
experiências de modernização de empresas estatais em países como França e
Inglaterra e havia um interesse do governo em promover algumas reformas”,
relata Bresser. “Aproveitei esse cenário e organizei um conjunto de ideias. Em
apenas seis meses, montamos o plano diretor da reforma administrativa”, completa.
A proposta de Bresser mudou regras de concursos públicos, instituiu a gestão
por resultados e criou a figura das organizações sociais, entidades privadas
sem fins lucrativos para as quais o Estado transferiu a administração de
serviços.
Estudos de políticas públicas
em que aparecem a figura dos empreendedores adotam com frequência um
referencial teórico desenvolvido nos anos 1980 pelo cientista político
norte-americano John Kingdon. Segundo o modelo de múltiplos fluxos, a criação
de políticas é explicada pela confluência de três fatores. Um é o fluxo de
problemas, caracterizado por crises e eventos que demonstram a relevância do
tema. O segundo é o fluxo de soluções, que é a viabilidade técnica e econômica
de saídas para o problema e sua aceitação pela sociedade. O terceiro é o fluxo
político, entendido como a articulação de forças organizadas que impulsiona a
busca de soluções. A convergência dos três abre uma janela de oportunidade para
resolver o problema – e a contribuição do empreendedor consiste em aproveitar o
momento favorável e propor a solução.
“Os empreendedores de políticas
públicas conseguem unir soluções, problemas e o contexto político, aproveitando
as oportunidades para implementar novas ideias na sociedade e na administração
pública”, explica Ana Cláudia. O cientista político Eduardo Marques, professor
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo (FFLCH-USP), explica que algumas teorias se voltam mais para a abordagem
individual, enquanto outras se dedicam a análises estruturais. “O modelo de
Kingdon avança no sentido de reconhecer o papel de um ator específico, mas sem
deixar de inseri-lo no contexto social e político”, afirma Marques, que é
pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole, um dos Centros de Pesquisa,
Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP.
Nikolaos Zahariadis, professor
do Rhodes College, nos Estados Unidos, ressalta que estudos sobre
empreendedores de políticas públicas ajudam a estudar como ideias se
disseminam. “As ideias não existem em um vácuo. Elas são defendidas, negociadas
e implementadas por pessoas ou grupos”, salienta. Um exemplo mencionado na
literatura sobre o tema é o do economista Alfred Kahn (1917-2010), que à frente
do Conselho de Aviação Civil no governo do presidente Jimmy Carter (1977-1981)
promoveu uma desregulamentação capaz de abrir espaço para as companhias aéreas
de baixo custo nos Estados Unidos.
Em uma tese de doutorado
defendida em 2015 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o sociólogo
Márcio Barcelos aponta o engenheiro Ernesto Lopes da Fonseca Costa (1881-1953)
como um empreendedor de políticas públicas no Brasil, muito antes da existência
do conceito teórico. Professor da Escola Politécnica do Rio de Janeiro e
fundador, em 1921, do Instituto Nacional de Tecnologia, Fonseca Costa atuou no
desenvolvimento de uma tecnologia nacional para a produção de biocombustíveis
no Brasil, ao mesmo tempo que mobilizou políticos e autoridades para a busca de
alternativas ao petróleo, articulando no governo Vargas a pesquisa sobre álcool
combustível com o Instituto do Açúcar e do Álcool. Outro caso descrito é do
agrônomo e ecologista José Lutzenberger (1926-2002), por sua influência na
formulação de uma legislação de controle do uso de agroquímicos no Rio Grande
do Sul em 1982, que teve reflexos na Lei Brasileira de Agrotóxicos, de 1989,
conforme mostrou a socióloga Caroline da Rocha Franco em uma dissertação de
mestrado em políticas públicas defendida em 2014 na Universidade Federal do
Paraná – Lutzenberger se tornaria secretário nacional do Meio Ambiente no
governo Fernando Collor de Mello (1990-1992).
No terreno da educação, um
destaque foi o grupo liderado por Ivo Gomes, secretário municipal de Educação
da cidade cearense de Sobral no início dos anos 2000, responsável por um
conjunto de ações experimentais para reforçar a alfabetização nas escolas
públicas que se tornou referência para o Pacto Nacional pela Alfabetização na
Idade Certa, um programa do Ministério da Educação (MEC). “No Ceará foi
constituído um grupo coeso, em termos técnicos e políticos, que foi capaz de
estabelecer uma alteração na agenda educacional, aproveitando-se da experiência
anterior e criando novos instrumentos”, escreveu o cientista político Fernando
Abrucio, professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da
Fundação Getulio Vargas, autor de um estudo sobre o tema.
Eduardo Marques, da USP,
salienta que nem sempre é possível identificar um empreendedor vinculado a uma
política pública. “Em muitos casos as mudanças ocorrem de forma gradual,
influenciadas por várias ideias e grupos”, afirma. Ele cita como exemplo o
programa Bolsa Família, implementado no primeiro governo Lula (2003-2006).
“Nesse caso houve uma transformação em relação ao governo anterior. Mas essa
mudança concentrada e de porte foi precedida de uma mudança incremental e
gradual ainda nos anos 1990. Por isso, na minha opinião, não se consegue
identificar a figura de um empreendedor por trás dessa política”, diz. Pode
ocorrer de o empreendedor da política ser também o autor da ideia. No entanto,
os estudos mostram que, em boa parte dos casos, ele cumpre mais a função de
organizador. “Trata-se da pessoa que faz as coisas acontecerem a partir da
identificação de impasses e da articulação de possíveis soluções”, afirma Paul
Cairney, pesquisador da área de políticas públicas da Universidade de Stirling,
na Escócia.
Para Felipe Gonçalves Brasil, o
ex-ministro da Educação Fernando Haddad (2005-2012) também pode ser
classificado como um empreendedor de políticas públicas. “No MEC, Haddad esteve
à frente do debate sobre ampliar o acesso à universidade. Embora o desafio
fosse conhecido, ele criou uma nova imagem do problema, que só poderia ser
resolvido se fossem criadas novas vagas no ensino superior”, conta Brasil, ao
citar programas como o Reestruturação e Expansão das Universidades Federais
(Reuni) e o Universidade para Todos (ProUni). “Não necessariamente todas essas
ideias vieram da cabeça de Haddad. Mas ele filtrou propostas e expandiu ideias,
além de avaliar a viabilidade das ações que propôs”, afirma Brasil.
[Artigo extraído do seguinte endereço: http://revistapesquisa.fapesp.br/2017/10/25/arautos-de-mudancas/?cat=politica&utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=mailing_740]
[Link para o artigo em inglês de Felipe Brasil e Ana Cláudia Capella: http://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1080/14494035.2017.1374691?needAccess=true]
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