Complexidade em lugar da privacidade: uma alternativa para os fenômenos subjetivos
No artigo intitulado “Além da privacidade”, Pompermaier e Lopes (2018) revisam de forma crítica a proposta skinneriana de eventos privados para tratar dos fenômenos subjetivos. Os autores revisitam outras propostas de refinamento e reformulações deste conceito e, ao final, argumentam por seu abandono e pela superação da noção de privacidade adotada no Behaviorismo Radical.
Há décadas os analistas do comportamento vêm adotando a proposta formulada por Skinner para tratar dos fenômenos subjetivos. Nesta proposta são chamados de eventos privados aqueles comportamentos que ocorrem sob a pele (Skinner, 1974/1976), são considerados de mesma natureza dos eventos físicos e se diferem destes apenas pelo grau de restrição do acesso e da observação que possuem em relação aos eventos públicos. A forma peculiar de considerar estes eventos é apontada por muitos autores como um dos pilares que sustenta o Behaviorismo Radical de Skinner frente aos demais behaviorismos (Carrara, 2005) e, também, como uma conquista na superação do dualismo metafísico.
No entanto, muitas críticas têm sido tecidas por autores da área acerca do uso deste conceito. Para Tourinho (2006) a proposta skinneriana não foi capaz de instrumentalizar a prática do analista do comportamento. Dittrich et al. (2009) complementam afirmando que é comum que analistas do comportamento, em seus trabalhos experimentais, evitem fazer menção aos eventos privados, pensamentos e emoções, em suas análises e mantenham a predileção por descreverem apenas as respostas e estímulos públicos envolvidos em seus estudos. Baum (2011) argumenta, também, que os eventos privados, assim como os mentais, não se ajustam bem às exigências da investigação científica.
A partir de uma concepção monista da realidade, os behavioristas radicais são levados a entender que os eventos privados, subjetivos, são da mesma natureza que os eventos físicos, públicos e, portanto, diferem-se uns dos outros apenas pela impossibilidade de serem observados externamente. Tal impossibilidade seria ocasionada pela falta de instrumentação para realização da tarefa não por sua natureza, o que levaria a crer que são apenas circunstancialmente inobservados e não inobserváveis (Palmer, 2011). Nesta concepção, inferências e interpretações serviriam como paliativos até que a observação direta de algo considerado real pudesse trazer a verdade. Alguns problemas são apontados nessa forma de conceber os eventos privados: a) os eventos privados ficam relegados a um grau inferior de cientificidade pela impossibilidade de observação, mensuração e manipulação a que estão sujeitos (Hayes & Fryling, 2009); b) o conceito de eventos privados ancorado na distinção observável/inobservável instaura um dualismo epistemológico entre eventos que podem ser conhecidos pela observação direta e os que são “apenas” interpretados, incorrendo nos problemas da tentativa de purificar a observação da interpretação como faziam os positivistas lógicos (Laurenti & Lopes, 2009); c) esta postura suscita a concepção do realismo acerca da observação, que é incompatível com a proposta relacional e contextual do Behaviorismo Radical.
Muitos autores na história da filosofia da ciência argumentam acerca da impossibilidade da purificação dos dados da observação em relação à subjetividade do pesquisador (das teorias e da interpretação que carrega consigo). Hanson (2005) questiona: “que poderia ser uma observação independente de interpretações?” e afirma a impossibilidade de separá-las, já que acontecem em conjunto no comportamento do pesquisador. Retomando a concepção relacional, o autor afirma que observar é comportar-se em relação ao que se observa e, segundo Skinner (1953/1965), não pode ser comparado meramente a uma câmera que faz uma fotografia porque o observador já parte de uma resposta previamente condicionada quando observa. Abib (1997) fortalece o argumento da “inseparabilidade” ressaltando que a atividade de observar já acontece controlada por fatores como a experiência cultural, a expectativa e o conhecimento da situação que são atribuídos à atividade interpretativa. No mesmo sentido, Lopes (2006) mostra como o compromisso do Behaviorismo Radical com o relacionismo (e não com o realismo) está presente quando são feitos os recortes topográficos para análise das funções dos comportamentos, tais recortes são interpretações que já partem de uma suposição acerca do funcionamento relacional entre organismo e ambiente. Isso nos mostra como a observação sempre está orientada por uma teoria. Sendo assim, de acordo com os autores, é incompatível com o relacionismo adotado no Behaviorismo Radical a distinção entre eventos que são observados e interpretados de um lado e aqueles que são “apenas” interpretados de outro.
Outra proposta para sustentar o conceito de evento privado está pautada na separação entre eventos que podem ser sentidos de fora do corpo, a percepção (pelo sistema exteroceptivo) e eventos que só podem ser sentidos de dentro do corpo, a sensação (pelos sistemas proprioceptivo e interoceptivo), possuindo, portanto, formas diferenciadas de acesso. Para Pompermaier e Lopes (2018) esta distinção incorre na cisão entre sensação e percepção, também problemática para a ciência.
Dizer que duas pessoas estão se comportando sob controle do mesmo estímulo, ou seja, percebendo-o, é aceitar a concepção realista de que há um estímulo presente na realidade que é independente de cada uma delas. Em uma concepção relacional, concebe-se que o estímulo é estímulo para determinadas respostas, ou apenas na relação com estas e não em si mesmo, portanto, não pode ser estímulo antes de se dar nessa relação. Os autores também argumentam, assim como (Zilio & Dittrich, 2014), que a definição proposta por Skinner acerca das vias de contato é rudimentar e mostram como a neurofisiologia tem apontado para uma complexidade das relações no sistema nervoso que inviabiliza a divisão simplificada feita por Skinner em intero, próprio e exteroceptivo.
Aprofundando numa análise das cisões que são feitas na concepção realista de ciência, Lopes (2008) tece uma crítica à separação entre sensibilidade e ação, entre sensing e movimento. Skinner (1984/1987) privilegia o movimento quando declara acreditar que “o primeiro comportamento foi presumivelmente um simples movimento” (p. 66). Lopes (2008) argumenta que se fosse assim, o primeiro movimento seria completamente aleatório e não havendo um sensingque lhe ocorresse concomitantemente não seria afetado por suas consequências sobre o ambiente e não poderia evoluir. Para este autor, todo comportamento é uma coordenação sensório-motora e não há como separar esses dois aspectos, não há puro sensing, pura percepção ou puro movimento.
Apesar de adotar-se uma perspectiva indissociável entre observação e interpretação, é preciso concordar que os fenômenos se diferem quanto à dificuldade que colocam ao pesquisador para que sejam conhecidos (observados-interpretados). É o caso dos fenômenos como pensamentos (dos outros e de si mesmo), estados emocionais e subjetivos. Um desafio que se coloca ao behaviorista radical é lidar com esses fenômenos sem recorrer a uma propriedade inerente aos estímulos, como acessibilidade, para explicá-los. Pompermaier & Lopes (2018) sugerem que a análise desses fenômenos deve ser feita considerando, não a sua inacessibilidade, mas a sua complexidade e sua determinação que envolve o entrelaçamento de contingências nos três diferentes níveis de seleção.
Para Tourinho (2006), os comportamentos devem ser escalados em um continuum de complexidade no qual são considerados mais complexos aqueles que possuem níveis adicionais de determinação. Tal escala varia dos comportamentos determinados apenas filogeneticamente, que possuem somente um nível de determinação, até as práticas culturais, que são entrelaçamentos complexos de contingências presentes nos três níveis, filogenético, ontogenético e cultural. Quando falamos de medo, podemos nos referir a medos (comportamentos) de diferentes graus de complexidade. Alguns podem ter suas determinações em níveis mais básicos de seleção, outros podem partir de contingências que envolvem construções da cultura através do comportamento verbal. Para o autor, isso tem implicações sérias porque estabelece o grau de viabilidade de uma intervenção em terapia. Por exemplo, se a terapeuta pode abordar a questão a partir das contingências verbais estabelecidas em sessão ou se necessitará de exposição direta ou ainda manipulação de situações fora do setting terapêutico.
Outra consideração importante a se fazer sobre a complexidade dos fenômenos comportamentais diz respeito à participação de modos múltiplos e alternativos de reforçamento. Lopes (2008) afirma que ao considerar a complexidade a partir destes dois pontos apresentados acima, tem-se a concepção de comportamento como processo dinâmico, que supera as descrições baseadas apenas em topografia e fisiologia. Dessa forma, entende-se que descrever sentimento é mais do que apenas relatar fielmente uma resposta específica e pontual subjetiva, mas que a descrição é modulada em diferentes graus por contingências nos três níveis, principalmente ontogenético e cultural, de onde vêm as práticas verbais de descrição do mundo dito interno.
Esta concepção é reiterada em Tourinho (2006) quando defende que mesmo as experiências com o próprio corpo experimentada individualmente são discriminadas em razão de aprendizagens, frutos de arranjos complexos de contingências em todos os níveis de seleção que modelam a auto-observação e o relato. Para esse autor, as contingências que direcionam a produção de comportamentos excessivamente voltados para individualização e interioridade são resultantes das práticas de uma sociedade moderna. Essa forma de ver a si mesmo e o mundo dá base para suposição de um universo obscuro e particular, interior e privado, que está na raiz do conceito de evento privado.
Os autores concluem que aquilo que se entende nas psicologias mentalistas como mundo privado é produto de contingências complexas que são, principalmente, culturais. É a cultura que, em virtude da necessidade de ensinar o autocontrole a seus membros, ensina a todos formas mais complexas de discriminação a partir das relações emocionais primárias. Portanto, arguem para que o Behaviorismo Radical abandone o conceito de evento privado e passe a lidar com os eventos subjetivos a partir da consideração de sua complexidade em lugar de sua acessibilidade.
[Notícia
extraída do seguinte endereço: https://boletimcontexto.wordpress.com/2018/06/15/artigo-complexidade-em-lugar-da-privacidade-uma-alternativa-para-os-fenomenos-subjetivos/#more-2872]
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