As regras éticas da ciência: Uma discussão sobre boas práticas científicas
As pesquisas científicas, independentemente da área em que são realizadas (e.g., ciências humanas, exatas, biológicas), seguem regras comuns: a escolha de um ou mais objetos de estudo, a elaboração de uma pergunta de pesquisa, a descrição de um método, a divulgação dos resultados, etc. Juntamente com as regras que criam parâmetros para a atividade de pesquisa, existe outro conjunto de regras, que sinaliza quais práticas científicas devem ser evitadas por questões éticas, tal como plágio, manipulação de resultados e publicações duplicadas. Considerando a importância da aprendizagem de um repertório de boas práticas científicas, Guazi, Laurenti e Carrara (2018) analisaram um documento elaborado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq, 2011), que descreve quais são as más condutas científicas e suas consequências, além de estabelecer quais são os parâmetros de uma atividade de pesquisa pautada em princípios éticos.
De acordo com Guazi, Laurenti e Carrara (2018), a preocupação com más condutas científicas iniciou-se na década de 80, nos Estados Unidos, com a exposição sistemática de pesquisas que apresentavam problemas éticos. No Brasil, o mesmo processo ocorreu entre os anos de 2007 e 2013, e acarretou na criação da Comissão de Integridade na Atividade Científica (CIC), proposta pelo Conselho Deliberativo do CNPq. Apesar desse movimento, Azevêdo (2006) e Lins e Carvalho (2014) defendem que ainda não é possível identificar todos os problemas relacionados às más práticas científicas no Brasil, por duas questões principais: a maior parte das denúncias não é investigada por agências governamentais; e, em geral, instituições públicas e privadas não possuem departamentos ou políticas específicas destinadas à investigação e condução de eventuais denúncias. Além disso, são poucas as pesquisas realizadas com o objetivo de identificar as variáveis relacionadas à utilização de más práticas científicas, o que dificulta a elaboração de estratégias que evitem a desonestidade na ciência brasileira.
No relatório elaborado pela CIC (CNPq, 2011), Guazi, Laurenti e Carrara (2018) identificaram que as diretrizes presentes no relatório podem ser entendidas, a partir de um viés analítico-comportamental, como regras. Tais regras se referem à relação entre pesquisadores e seu contexto de produção científica, além de prescreverem algumas práticas associadas à condução ética da ciência. Isso é feito por meio da descrição de quatro modalidades específicas de más práticas científicas, sendo elas a fabricação de dados, a falsificação de dados, o plágio e o autoplágio. Além de especificar tais modalidades e como evitá-las, no final do documento há a prescrição de 21 diretrizes, relacionadas à honestidade e à ética na prática científica.
Guazi, Laurenti e Carrara (2018) analisaram as informações presentes no relatório (CNPq, 2011) por meio de descrições de contingências de três termos, identificando o contexto antecedente, a resposta e a consequência esperadas dos indivíduos para quem o documento se destinava. Após a descrição de tais contingências, elas foram separadas em duas categorias: regras completas (que continham todos os termos da contingência) ou fragmentárias (que continham um ou dois termos da contingência).
No que se refere aos resultados da análise, os autores identificaram que as consequências danosas à ciência que são descritas no relatório (e.g., atraso no avanço científico, custo financeiro e humano elevado, obtenção indevida de benefícios) são inespecíficas e, em geral, não se constituem como consequências aversivas especificamente para o comportamento do pesquisador que se utilize de más práticas científicas. Inclusive, os autores apontam que uma das consequências, a chamada “obtenção indevida de benefícios”, por parte do pesquisador que se utilize de práticas antiéticas, se constitui como uma consequência reforçadora positiva para o comportamento do pesquisador em questão.
Já no que se refere às 21 diretrizes relacionadas às boas práticas científicas, que se localizam no final do relatório da CIC (CNPq, 2011), Guazi, Laurenti e Carrara (2018) avaliam que tais regras são consideradas fragmentárias, pois apresentam apenas o contexto antecedente e/ou a resposta, sem qualquer consequência. Ainda que a utilização de regras fragmentárias possa ser efetiva para o aprendizado de novos repertórios comportamentais, os pesquisadores sinalizam que a ausência da descrição de consequências permite a interpretação ambígua das regras, por parte do leitor. Tal interpretação ambígua torna menos provável que a regra fragmentária seja capaz de controlar o comportamento do indivíduo a quem ela se destina.
Guazi, Laurenti e Carrara (2018) afirmam que, além das descrições de regras, o relatório também descreve as contingências de acordo com o valor reforçador das consequências para a comunidade científica como um todo. Todas as práticas que geram consequências positivas para a comunidade são classificadas como boas práticas científicas, enquanto práticas que geram consequências aversivas para a comunidade são entendidas como más práticas científicas. Os autores afirmam que essas classificações podem ser entendidas como controle ético, em conformidade com a descrição de Skinner (1953). De acordo com este autor, o controle ético é realizado por grupos, sendo uma prática voltada ao controle do comportamento individual. Há a definição de quais são os “bons” e os “maus” comportamentos, sendo que os primeiros são reforçados, e os segundos, punidos. A elaboração do relatório da CIC (CNPq, 2011) é uma maneira de formalizar tal controle ético, por meio de um código escrito, elaborado por um grupo específico.
No que se refere às ações que tem por objetivo desestimular as más condutas científicas, o relatório (CNPq, 2011) não especifica exatamente quais serão as consequências que ocorrerão após a apuração de denúncias recebidas pela CIC, visto que elas serão definidas após cada caso. Entretanto, é sinalizada a possibilidade do encaminhamento da denúncia para revisores especializados, o que pode significar a retratação (cancelamento) de artigos científicos derivados de pesquisas fraudulentas. De acordo com Fang et al. (2012), porém, o intervalo médio de tempo entre a publicação e a retratação é de 48,6 meses. Guazi, Laurenti e Carrara (2018) analisam que tal consequência é tardia, e possibilita que o pesquisador responsável pela pesquisa fraudulenta tenha acesso a consequências reforçadoras positivas de curto e médio prazo, antes que ocorra o processo de denúncia e retratação.
Os autores sinalizam que uma das variáveis relevantes que pode manter más condutas científicas está relacionada a avaliação quantitativa da produção científica. Ou seja: pesquisadores ligados a instituições públicas e privadas precisam atender a determinados critérios de produtividade acadêmica, que permitem o acesso a bolsas, financiamentos, promoções, títulos e outros benefícios. A situação se complica ao considerar que o mesmo órgão (CNPq) responsável pela avaliação das denúncias de más práticas científicas é aquele que estabelece os critérios quantitativos para o acesso a benefícios. Guazi, Laurenti e Carrara (2018) acrescentam, ainda, que as boas práticas científicas envolvem consequências genéricas, que ocorrem apenas em médio e longo prazo. Tais consequências podem acabar sendo ineficazes para o controle do comportamento do pesquisador, que está em um contexto que exige que ele se comporte de maneira a produzir uma quantidade específica de pesquisas, independentemente da sua qualidade. Assim, os autores afirmam que “há certa compatibilidade entre comportamentos de má conduta científica e demandas de produtividade” (Guazi, Laurenti & Carrara, 2018, p. 7).
Ao final, concluem que é necessário avaliar quais são os valores envolvidos na prática científica. Ainda que muitos reforçadores possam estar envolvidos, não é possível ignorar a relevância dos reforçadores relacionados a produção quantitativa de pesquisas. Em especial, destaca-se às consequências reforçadoras ligadas ao comportamento de publicar artigos científicos. Visto que tais consequências são imediatas e as consequências ligadas às boas práticas científicas são de médio e longo prazo, os autores sugerem que instituições e organizações de pesquisa estabeleçam consequências arbitrárias de curto prazo que sejam contingentes a práticas éticas. Dessa forma, em médio e longo prazo, o comportamento ético na pesquisa pode ser reforçado de maneira natural. Por fim, os autores também sinalizam a importância de revisar os critérios quantitativos relacionados à avaliação acadêmica, visto que tal variável é bastante relevante para a manutenção de práticas científicas antiéticas.
[Notícia
extraída do seguinte endereço: https://boletimcontexto.wordpress.com/2018/08/17/boas-praticas-cientificas/]
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